O sonhador do Navio Baleeiro

Literatura

É noite severa na península, o céu apresenta-se rasgado de sarna e vitiligo e o mar estende-se como um deserto rumorejante e insondável. A brisa e o silêncio reinam potentes. Ao largo do mar um soberbo navio baleeiro lambuzado de gordura flutua. Nicolas despertou de seu sono profundo. Tinha dormido desde a tarde, mergulhado em nada, sem sobressalto e nem sonho. Doíam-lhe as costas e o braço. De repente visita-o a lembrança da bebedeira que precedera aquele sono no infinito. Fora a melhor embriaguez que alguma vez a vida ousara mostrar-lhe em tempos de estudante. Lembrou-se da mesa farta de cerveja e daquelas raparigas da faculdade exibindo a elegância e plenitude inalcançável de seus belos olhos. Desfez-se do passado recente e a realidade trouxe-lhe também a pequena dor de babalaze, porém recompôs-se.

Estava como sempre, fazia isso depois duma longa noite de bebedeira. Ia deitar-se na entrada do Mitete, um lugar sossegado. Embora a faculdade tenha se esquecido dele, Nicolas sempre voltou para ali e durante muito tempo ficou na certeza de que aquele lugar era único lugar para dissipar o álcool e a miséria de estar vivo. Mesmo depois que destruíram o Mitete, continuou a regressar para ali, guiado por uma lembrança longínqua, que se lhe apresentava como um longo corredor quente e silencioso, vibrando ao grito do tempo. Contemplava a praia, o farol listrado, a floresta que cerca, o mar e a placa fixada com as escritas: O mar perdido do Mitete!

Naquele dia algo insólito deu-se. Deitara-se muito tempo e não acreditou neste facto. Era já noite lívida como um traseiro de pedras e o mar revolvia-se como se as ondas fossem o vômito dum mostro inominável. No entanto viu-se desprovido de angústias logo depois que deparou no longínquo o soberbo navio baleeiro. Deteve-se absorvido por aquela visão apocalíptica. Os contramestres debruçados na amurada fitando-o como se aquela sua serenidade também fosse o mistério para os baleeiros. Encantou-o o estilo selvagem da caça, o navio com aquela bandeirola fixa no mastro principal, a giba larga e enfunada, a constituição física dos arpadores e a persistência do capitão. Estas visões, trouxeram-no certa perturbação à alma. Por isso dispôs-se para uma reflexão. Sentou-se novamente sobre a duna de areia e absorveu-se em sonho de suas conjeturas baléirica.

Pouco depois uma voz de rapariga chamou-o pelas costas. Nicolas estremeceu e despertou do sonho, olhou para trás e algo como um fio quente tocou-o no peito. Era alta e magra, surgira da escuridão da floresta, tinha olhos brilhantes, cabelo lustroso e passos vacilantes. Enquanto a rapariga ia se aproximando, assustado, Nicolas teve a vontade de fugir para longe, para um lugar em que a beleza não perturba o sossego. Embora naquele seu panteão nunca mulher alguma ousara aparecer, porém algo o fez resistir. A rapariga continuou a aproximar-se e o peito de Nicolas continuava a verter-se de ansiedade.

– Ola! Disse a rapariga, com uma voz sonora e pacífica.

—Ola! Respondeu Nicolas alegre e também pouco incomodado por ver seu sonho baleeiro frustrado. Deixou de pensar naquela rapariga próxima e bela; mergulhou novamente, sem preâmbulo, na imensidão de seus sonhos de conjecturas baleeira. A rapariga sentou-se ao lado do sonhador. Era uma espanhola, cheirava flor, seus olhos incógnitos e severos, chispavam a terra de luz. Trazia um vestido branco de seda, estampado “bugavilia” e seus cabelos loiros de donzela, trançados, caiam-lhe pelas costas.

– Vim aqui por ti, Disse ela, olhando para o Nicolas. Neste instante, entretido em sua introspeção baleeira, Nicolas, mal a ouviu. No entanto despertou de seu sonho baleeiro e encarou-a com ternura. Pensou em seus olhos e de como seus lábios retinham a cor do mar. Teve vontade de lançar-se sobre ela, porém algo o impediu. “Sou um homem educado!” Pensou. E de seguida mergulhou-se em suas conjecturas baleeiras.

A rapariga continuou dizendo: – Vim por ti.

Porém, o nosso sonhador de baleeira nem sequer a ouviu. A rapariga cheio de desgosto deitou-se de bruços na areia e rebentou em lágrimas. Tinha chorado sem freio pela sua condição de donzela, ignorada e por aquela solidão de estar sozinha com um homem ao seu lado. Ela olhava para o Nicolas, mas Nicolas sonhava mergulhado em seus labirintos sombrios, afundando pelo mistério dos mistérios. Nicolas roda, roda, roda pelo mar; roda pelo deserto, pelo vento e pela casca de noz do universo. Conjeturando a realidade humana nesta metáfora baleeira que acreditamos chamar-se de vida.

No dia seguinte à tarde, quando o sol fulmina o sossegado mar perdido do Mitete, Nicolas finalmente despertou. Tinha uma vaga lembrança daquela rapariga que sentara ao seu lado. Lembrou-se de seus olhos chispantes, lembrara-se de seu vestido com estampa de flores. Levantou-se assustado, olhou para o lugar em que a Espanhola sentara-se, sorveu o resto de seu perfume. Daí veio-lhe a lembrança tão visível da espanhola, pensou tanto nela. Caiu novamente na areia e desta vez para poder pensar numa espanhola. Nicolas está num mar sonhando com a espanhola que durante muito tempo, pedira-o o Amor. Oh vejam, lá ao fundo do mar: um navio baleeiro despojado de mistério!

Texto: Ezequiel Simango, Médico Estagiário no Hospital Provincial de Tete;

Arranjos e Fotografia: Augusto Mutede J Nhapure, Médico Estagiário no Hospital Provincial de Tete.